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Sala de aula
Wednesday, April 21, 2004
 
Levantou-se, respondendo à ordem da professora altiva e autoritária, e leu em voz alta, sem hesitar, o texto:

'A lagarta proferiu o discurso de homenagem às lentilhas douradas que se acumulavam nas rochas sardentas da praia das garças...'

A professora arregaçava os óculos minúsculos e sobre compridos, que comprimiam o seu nariz apassarado, com os seus dedos longos e cadavéricos. Tentava encontrar essas mesmas palavras no seu guião...

'Oh menina...pare...pare...em que página é que se encontra?

A menina olhava para baixo e para os lados...

'Página senhora? Encontro-me na sala de aula....'

Os outros meninos riam às custas da ingenuidade de Maria. A professora, mais irritada com a reacção dos outros, revelando assim que estas reacções ingénuas de Maria eram frequentes, gesticulava com os seus longos braços, como policia sinaleiro que impõe a ordem: viatura que vem da esquerda não tem prioridade! E os autocarros cheios de pessoas devem passar em primeiro lugar....etc. etc...a sala de aula transformava-se numa estrada de sentidos únicos e de manobras proibitivas rapidamente censuradas e punidas.

E os meninos controlavam-se, como se nada se tivesse passado...uma amnésia geral que fazia com que os que se sentassem por último, após tanta algazarra, franzissem a testa, reflectindo sobre o porquê de estarem em pé...

E este clima de suspeição era interrompido...

Página 1875 texto 345 das linhas 12 à 57. Ouviu menina Maria?

Maria atrapalhada, corando entre as sardas, que iam perdendo o brilho, face à restante pele que ia ganhando a mesma cor, folheava o livro pesado e erguia o queixo triunfante mais uma vez:

'A bela Romana seguia as pisadas lestas de seu marido, acalentando a esperança de que a sua terra natal, Diospiminis, estava já ali, por detrás da colina que visualizava à sua frente. '

A professora sorria com os olhos, confirmando que este era o texto a ser lido. E Maria continuou:

'Lentilhas minhas amigas!! Chegou o momento único por que todas esperámos...as minhocas querem manifestar publicamente o seu apoio contra as garças vilãs que povoam o nosso condado...'

A professora esfregava os olhos, de forma exacerbada, quase se convencendo a si mesma que era ela que estava com problemas de visão. Mas não. Não lia estas últimas palavras em nenhuma parte da página 1875, texto 345, das linhas 12 à 57.

'Menina? onde lê essas palavras?'

'Senhora professora...leio no blog do Ricardo Monteiro...'

'Ai MEU DEUS!! esse blog!!!!'

O quarto escuro, iluminado unicamente por um foco circular luminoso da forma de uma lua cheia, desenhado algures num chão de madeira poeirenta, descobria algumas palavras sujas, escritas algures por cima de um jornal velho e sujo. Esse quarto vivia solitariamente no cume de um monte abandonado por árvores e pelas criaturas vivas....dizia-se que as mortas encontravam abrigo por lá.

Algures entre as sombras, uma mão negra desenhava esboços, também estes negros. Esta mão era o prolongamento de um corpo, que permanecia imóvel, enquanto formas nasciam entre folhas gastas. Algures entre as imagens podiam-se ler as palavras: 'Blog...Ricardo Monteiro'...e mal o leitor acabara de ler estas palavras, o vulto subitamente desapareceu.

'Maria..venha cá! aproxime-se...vá...não demore tanto...'

Maria levantava-se, meio a medo, e pé ante pé aproximava-se da imagem da sua professora, que parecia ganhar peso com a proximidade.

'Deixe-me ver o seu livro...'

Arregaçava mais uma vez os seus óculos, que pareciam apavorados com os olhos arregalados da sua dona, e tentava ler as palavras anteriormente proferidas pela sua aluna. Mas nada. A professora olhava agora alternadamente para Maria e para o livro, tentando agilizar a sua busca com alguma colaboração. Mas Maria continuava resignada ao futuro e potencial castigo e, para não piorar o seu estado, preferia ausentar-se de qualquer acção que a pudesse de qualquer forma prejudicar. E, assim, mantinha um cabisbaixo olhar, esperando que a sentença atenuasse com a sua submissão.

'Pois...não sei de onde a menina retirou tais palavras...acho isso tudo muito estranho. Vou ter que ter mais uma conversa com o seu pai...'

Um homem rude, vestido de negro e de olheiras pronunciadas, pegava com esforço, visível nas suas têmporas inchadas, um caixão vazio e colocava-o por cima de uma base de pedra tosca acima do solo. Ao lado, por cima de uma mesa negra de tampo de mármore, encontrava-se um corpo, meticulosamente vestido...mas morto. Lá fora chovia, e trovejava, como convém a este tipo de cenário.

Alguém batia à porta, mas os sons confudiam-se com o trovejar ruidoso, e só ao terceiro ou quarto bater é que o homem rude congelou e atentou à proveniência desse som, no momento em que mais um dos clarões exteriores destacou os seus cabelos negros colados com suor à sua testa alta e redonda. Finalmente, apercebeu-se que alguém batia à porta e deslocou-se desapaixonadamente para a abrir.

A maçaneta rodou, a porta abriu-se com violência, e os miudos correram lá para fora em histeria. À medida que se iam afastando da escola, por entre as árvores do quintal adjacente, iam desaparecendo como se aquela escola nunca tivesse funcionado, ou como se os alunos nunca tivessem existido. Para trás ficara Maria, ainda dentro da sala de aula a arrumar os seus pertences.

Abria o estojo lentamente, e colocava a borracha, o afia, o lápis de carvão numero 1, o numero 2 e finalmente a caneta laranja com as letras meio sumidas: Funerária Lopes.

A porta aberta evidenciava um perfil radioso, cujo clarão fortissimo, provindo deste, obrigou o homem rude a fechar defensivamente os olhos e a protegê-los com os dedos inchados, calejados e húmidos de suor. Aos poucos, foi deslocando o seu olhar, de forma a evitar a luz mais forte, continuando com a pala orgânica, subentenda-se a mão colocada em frente dos olhos sem vida, e viu um homem de lata. A sua testa esbranquiçava com os clarões, que iluminavam o fim de tarde, e os seus olhos inexpressivos tendiam a perder essa mesma qualidade.

Deseja alguma coisa?

Um morcego voava, contente com o prenúncio de falta de luz, que ia consumindo as formas abaixo do seu voo. As copas das árvores, lá em baixo, perdiam o verde, perdiam os seus contornos nítidos, fundindo-se numa massa cinzenta homogénea. Após um longo voo entre os galhos mais elevados, seguia-se o percurso pelo monte calvo até ao seu topo.

Este morcego tinha uma fobia de espaços amplos, de espaços despidos de obstáculos naturais. No entanto, todas as noites combatia contra si próprio e voava durante breves, mas eternos minutos, por cima deste monte nu. A tentação de entrar uma, e mais uma vez, no interior da casa, que se encontrava no topo do monte, era avassaladora. Aliás, só assim era possível que esta criatura superasse tal pranto.

Maria caminhava lentamente, de casaco vermelho com um capucho também este vermelho, feito pela avó, que temia pela vida da sua única neta. A avó, que adorava contar-lhe histórias de crianças, que se perdiam na floresta, e que eram devoradas por lobos, mas que, sem que Maria se apercebesse muito bem, tinham sempre um volte-face e acabavam sempre com um final feliz, começava, devido à sua idade acentuada, a confundir essas mesmas histórias com a realidade e, assim, tinha feito o casaco, que Maria vestia, com um capucho, também vermelho, porque, pelo menos, essa história já ela a conhecia e sabia que tinha um final feliz.

Algures, lá em cima, Maria ouviu o guincho assustador, e assustado, de um morcego que, poucos segundos depois, lhe fazia um voo razante. Sentiu o sibilar do movimento, junto à sua orelha esquerda, e rapidamente se esquivou e se protegeu atrás do que restava de uma árvore seca pela morte. Por entre os galhos, ouviu-se a si própria respirar e sentiu o seu coração acelerado bater com violência no seu peito, enquanto segurava um dos galhos secos com força descontrolada. Olhava para cima e à sua volta e nada via que a pudesse identificar com o sibilar assustador que a deixara naquele estado.

Oh oh...Mas que disparate vem a ser este? Quem é que me agarra assim com esta violência?

Maria largava prontamente o galho, que entretanto se movia, e dava dois passos para trás, assustada com a voz rouca e sonolenta, que provinha algures de uma árvore, que aparentava estar morta.

Deseja alguma coisa?

Perguntava o homem rude, entre dois relâmpagos, e após uma longa pausa a
observar a lata do visitante. Como este homem era adjectivado de rude, normal seria que ele nem sequer convidasse o homem de lata a entrar. E, de facto, durante longos momentos, enquanto o observava e, mesmo após a pergunta que lhe havia dirigido, mantinha-se junto à porta, não permitindo assim que este pudesse sequer explicar ao que vinha, do lado de dentro da casa. E continuava a chover abundantemente. Contudo, não por uma questão de simpatia mas mais por cordialidade profissional, retirou a cancela, que havia armado com o seu braço, colocado à frente da ombreira da porta, e dirigiu-lhe um convite saído a ferros.

Quer entrar?

E, dirigindo-se para a sala, virou-lhe as costas, esperando que este o seguisse. Dois passos à frente ouviu um estrondo enorme. Um estrondo tão violento que, apesar de ter coincidido com mais um relâmpago fortissimo, era por demais audível. Assustou-se, pensando por um breve momento que as dobradiças da porta pesada da entrada tinham fraquejado com as chuvas e que esta havia caído redonda no chão.

Contudo, quando olhou para trás e viu uma massa de lata enorme no chão, com forma humana, associou o som e começou a congeminar uma maneira de ganhar uma boa maquia à custa desta estranha criatura.

Reconfortado com o facto do seu trajecto ter ganho um obstáculo, o morcego já ambicionava o dia em que, para chegar ao seu destino diário, não teria que passar por tais tribulações. Pensava em como era agradável que houvessem mais criaturas a circular por aquele espaço deserto, e copas de árvores florissem do chão cinzento, agora sem vida. Enquanto se dedicava a estes pensamentos que, de certa forma, o desviavam das apoquentações derivadas da sua fobia, aproximava-se cada vez mais da casa.

A menina sabe porventura que idade eu tenho? acha normal agarrar-me assim?

Reclamava a árvore morta enquanto Maria não esboçava qualquer movimento.

Não lhe deram uma boquinha? deixe lá ver isso...

Algures, no tronco creme, velho e carcumido, brotavam dois olhos cheios de estrias esverdeadas, fazendo lembrar as tardes felizes que Maria passava com a falecida mãe, junto à cozinha a fazer pipocas.

Pois! a menina tem boquinha!! esses lábios rosa fazem parte da sua boquinha...Não fazem??

Maria dirigia agora o olhar para os seus próprios lábios, assumindo um estrabismo momentâneo. Revirava os olhos, o mais que podia, para se certificar da veracidade de qualquer resposta que viesse a dar. Afinal, desconhecendo esta criatura, mas associando o seu tom de voz imperativo ao tom de voz recriminador da sua própria professora, receava errar na resposta, temendo pelas consequências de aulas de biologia mal estudadas.

Maria parecia o cão do vizinho Pipukus, quando este pretendia morder a sua própria cauda, furioso com um corpo que, sendo-lhe estranho, fazia parte do seu organismo.

A árvore rapidamente mudou de humor, esquecida dos maus tratos físicos, que tinham acabado de a vitimizar, e ria-se à gargalhada com as acrobacias dos olhos de Maria.

Isto enterrado ao peso dava-me uma pipa de massa...e pagava os estudos à minha Maria, durante pelo menos dois anos. Assim pensava o indíviduo de testa lívida, enquanto limpava o suor da face, depois de ter deslocado o corpo de lata do hall de entrada para sala.

Este até podia ser considerado um homem rude, assim como o apelidei repetidamente, e que tinha uma visão da vida pouco ética, aos olhos dos demais. Mas era um homem capaz de qualquer sacrificio por Maria. Aliás, parecia evidenciar essa característica como a unica que a ligava ao mundo dos vivos. Todas as outras características estavam directamente ligadas ao seu ofício como coveiro...ao seu exímio talento como 'tratador' dos silenciados pela morte.

Era normal o custo da celebração de um funeral depender de alguns factores como o local desejado, o número de cafés servidos, as comidas servidas, as pessoas 'alugadas' (no caso dos indesejados que apresentassem menos de 5 amigos e/ou familiares) ou o caixão escolhido. Mas o preço de uma cerimónia nunca dependia do peso do hospedeiro da caixa. Neste caso, e atendendo a que seria necessário um maior número de pessoas para ajudar e um caixão especial que suportasse tal peso, ele estava disposto a abrir uma excepção que lhe soava muito lucrativa.

As folhas, lidas uma a uma, pela brisa que rompia através dos vidros partidos da janela, viravam, demonstrando a sua transparência suja de letras negras, quando atingiam a posição de perpendicularidade com as restantes. E essa sujidade revelava formas amalgamantes de sobreposições de caracteres que cada página apresentava por folha.

O som da escrita, pela utilização de uma pena velha, compunha a sinfonia que a passagem de folhas, da capa para a contra-capa, havia ritmado. Quem quer que estivesse a escrever, era óbvio que o fazia ao som das páginas. Era óbvio que as pausas, as acelerações na escrita e o carregar mais ou menos intenso da pena, serviam não só o propósito de mostrar um resultado com conteúdo literário mas também, e não menos importante, de evidenciar um ritmo que fosse musicalmente atraente.

o morcego, de garras firmes no ponto mais escuro da sala, via e ouvia a melodia da criatividade literária desenvolver a sua actividade. Lá em baixo, as costas invertidas de um ser, moldavam o cenário com algum movimento. Tudo o resto permanecia absorto na quietude do abandono. A curiosidade da criatura, que se suportava invertidamente e que observava a realidade do ponto mais superior da sala, nunca havia passado pela tentativa de visualizar o feitor mas os feitos artísticos. Nunca tinha tido a curiosidade de ver o rosto do ser mas sim as palavras que compunham a melodia de sons. O morcego, ele próprio, sem pudores e sem receio de críticas menos favoráveis, havia tentado escrever um romance sobre a vida de uma borboleta que se havia apaixonado por um morcego e que, assim, havia abdicado da sua vida diurna que lhe concedia essa sua beleza. A ideia era a de apresentar a ideia que um morcego seria uma espécie de borboleta nocturna. Uma forma de elevar o estatuto menos querido da sua espécie. Mas a essência romanciada não resultava da forma que ele queria. Não havia magia na sua escrita. Faltava algo. Esse algo, essa harmonia entre lirismo e palavras parecia estar ali em baixo...

Então a menina tem nome?

Maria, de pestanas tão salientes quanto as dúvidas, que lhe enevoavam a lucidez, receava qualquer resposta, mesmo quando a pergunta agora dirigida se parecia tão simples...

As palavras não lhe saem mesmo...é sempre assim?

Maria

Respondeu para evitar a segunda pergunta que lhe parecia bem mais complicada de responder...

Maria...Maria...

Repetiu a árvore que, entretanto, parecia aumentar em volume, trocando a posição confortável pela pose mais firme e hirta.
Depois de alguns segundos de pausa, em que Maria observava os movimentos lentos da primeira, a árvore continuou...

O seu nome começa por M...mas é a única letra em comum com o seu verdadeiro nome...

Maria, ainda nervosa, não compreendia o que raio a árvore estava para ali a dizer e assentia com a cabeça...

Não me parece que tenha entendido...o seu verdadeiro nome é Mestyhn...um nome com um significado tão profundo quanto antigo...o seu progenitor deverá explicar-lhe melhor o que eu estou para aqui a dizer...

Maria repetiu para si mesma o novo nome, complexada com a ignorância que não a deixava ser racional e entender que algo de estranho se passava e que este evento bizarro lhe pretendia transmitir algo...


(continua...)






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